Vadias


O crepúsculo do ilícito


Tu, de tetas escorridas,
Com toda a tua calma,
A tua roupa interior manchada de nódoas, os teus
Braços caídos.
E esses teus dedos saciados pendendo
Da palma das mãos.

Os teus joelhos um para cada lado
São como duas esferas pesadas;
As rodelas sobre os teus olhos parecem
Vagens de lágrimas;
Presas às tuas orelhas,
Duas enormes argolas de ouro, horríveis.

O teu cabelo sem vida, espalmado numa trança
À volta da cabeça.
Os teus lábios, alongados por palavras sábias
Mas nunca ditas.

E na vida que vives, já o esgar
Dos mortos.

Vêem-te sentada ao sol,
Adormecida;
Lembrando a suave graça que costumavas ter
E não conservaste,
Lamentam como em ti estão sepultados
Os altares da luxúria. (…)

Enquanto as outras definham na virtude,
Tu foste vida.

Ver-te-emos a olhar o sol
Por mais alguns anos,
Tendo sobre os olhos rodelas que parecem
Vagens de lágrimas;
E duas enormes argolas de ouro, horríveis,
Presas às orelhas.

Djuna Barnes, in O Livro das Mulheres Repulsivas, ed. &ETC, 2007



Djuna Barnes (1892 - 1982) nasceu em 1892, em Cornwall-on-Hudson, Nova Iorque. Desde cedo, começou a publicar artigos de imprensa, com um cunho muito pessoal e totalmente alheios à chapa do convencional. Haveria de escrever para a Vanity Fair, a Charm e The New Yorker. Foi, aliás, na qualidade de jornalista, que – depois de ter passado por Nova Iorque – rumou a Paris, mesmo a tempo da tempestade modernista. Regressada à América, levaria uma vida de reclusão voluntária, no seu exíguo apartamento de Greenwich Village. Viria a morrer em 1982. Na sua obra avultam não só a poesia, mas também o teatro e a ficção, na qual merece destaque o romance Nightwood (que Eliot prefaciou), de 1936.



Foi, todavia, ainda em Nova Iorque que, em 1915, D.B. publicou o opúsculo que a & etc agora apresenta sob o título O Livro das Mulheres Repulsivas e traduzidos por Fernanda Borges. Trata-se de um breve conjunto de oito poemas acompanhados de cinco desenhos. São retratos de mulheres – a primeira das quais é a mãe da poeta –, marcados por uma dolorosa e sensual carnalidade, que avulta, conturbada, nos versos de Djuna Barnes – «Vemos os teus braços humedecerem/ Ao calor da paixão;/ Vemos a tua blusa húmida/ A palpitar ao ritmo/ Dos corações ardentes que ressumam aos teus pés.» (p.27) Há um sensualismo desassossegado, nestes versos: não pára no louvor, antes se afunda na queda anunciada, várias vezes encenada e exorcizada – «Cai trôpega na rima,/ Resvalando do ponto da virtude/ Para o do crime// Agora tem os lábios murchos como antes foram vivazes/ Na juventude» (p.43).



A escrita de The Book of Repulsive Women cruza os ambientes e cambiantes finisseculares com a sensibilidade moderna que animava o universo criativo da autora e cujo vendaval avassalaria o mundo artístico de então. Nos seus poemas cruzam-se os motivos típicos do decadentismo fin de siècle – «Com as pernas quase estranguladas/ Nas tuas rendas, continuarias/ Nas bocas do mundo até à loucura/ Gravada no teu rosto.» (p.25) – crivado já por um espírito do tempo que desmancha esses rodízios – «Agora ela caminha com seu andar bamboleante/ Ao lado do lixo da rua,/ Enrola-se sob um lençol sujo/ Algures na cidade.» (p.35) Parece-me que essa saída, esse percurso porta fora, que o poema leva a cabo, de certa forma – se calhar demasiado simbolicamente; se calhar, sou eu a ver mal –, marca um passo em direcção à modernidade. Lorca deambulou por Nova Iorque, com os seus poemas (cf. O Poeta em Nova Iorque); Eliot flanou pelas ruas da cidade (cf. Pruffrock), descendente hipercivilizado, sobrecarregado, de Baudelaire, que iniciara o passeio convulso. E assim fazem os que, hoje, não entendem que não podem ser já assim, os que continuam, em vão, a passeata, já derreadas as solas poéticas e os olhares enviesados dos poemazinhos.

(Hugo Santos, respigado do blog Rascunho)

---------------------------------------------------------------------------
Djuna Barnes

Sessão de poesia. Por Nuno Meireles e Júlio Gomes

Domingo, dia 14 de Dezembro, 18h

Gato Vadio, rua do rosário 281 Porto

(mail de divulgação d0 Gato Vadio)

0 comentários :: Vadias