O que é pornografia II

Depois deste interessante mini-debate, proporcionado pelas respostas de carpe vitam, decidi dedicar mais algumas palavras ao assunto. Nos comentários de outro blogue, disse carpe, "É curioso verificar que pornografia vem de obscenidade e erotismo vem de amor. Claro que não são as palavras em si que importa, mas o conceito". Penso que aqui está um dos pontos essenciais, se se quiser compreender o fenómeno da pornografia. Quanto a mim, é exactamente a noção de obsceno que pode explicar o sucesso (e a eficácia) da pornografia. É porque ainda consideramos o sexo, o corpo e a nudez algo obsceno que a pornografia resulta. Uma das fórmulas de sucesso com maior longevidade e provas dadas é tão simples que nem chega a ser fórmula: o cru, o explícito é, só por si, excitante. Porque é que as imagens aproximadas de genitais (de pessoas que estão em plena cópula) são excitantes? Esteticamente, a maior parte destas imagens produzidas pela indústria pornográfica, não têm grande cuidado. Mais: até existe uma certa estética low-cost-amateurish que os realizadores gostam de explorar. Tal como as imagens tremidas de um acidente, captadas por câmara amadora prendem o olhar, a meio de um telejornal, a filmagem mal focada, com movimentos bruscos ou trôpegos, a má iluminação, num filme pornográfico, dão a ideia de algo que foi captado por olhos e mãos amadoras. É como se estivessemos a assistir, como voyeurs autorizados, a algo que não teve produção, não foi ensaiado. O sucesso de sites como o youporn.com, que se tornou uma empresa multimilionaria, ou de projectos numa onda de porno-gourmet, como os muito interessantes ifeelmyself.com e beautifulagony.com, ou ainda o ishotmyself.com, mostram que a palavra amateur é uma palavra mágica no mundo da pornografia. 

Voltando um pouco atrás, porque é que o obsceno é apelativo? Antes ainda, pensemos, porque é que o obsceno é obsceno? Recorrendo de novo à wikipedia: Obscenity (in Latin obscenus, meaning "foul, repulsive, detestable"), is a term that is most often used in a legal context to describe expressions (words, images, actions) that offend the prevalent sexual morality of the time. It is often replaced by the word salaciousness. A palavra, num sentido mais estrito, significa ofensa à moral sexual vigente. Já foi considerado ofensa, e crime, punido por lei (e em alguns locais do mundo ainda é), o sexo fora do casamento, o sexo anal, a masturbação, a homossexualidade.  O sentido em que a temos usado é um pouco diferente, significando tudo o que é considerado escandaloso, sexualmente, digno de ser escondido dos olhares de potenciais ofendidos. Juntando os dois sentidos da palavra, o que tem sido obsceno, ao longo dos tempos, com variações e contestações, é o corpo nu, o corpo praticando actos sexuais, ou mais precisamente os genitais. Não é à toa que as palavras obscenas, os insultos mais fortes, as plavras mais feias e insultuosas estão geralmente ligadas aos genitais.

Ao esconder-se o corpo, catalogando-o de indecente, está-se a atribuir-lhe um carga simbólica muito forte, como coisa proibida e desejada. Nas sociedades primitivas, e em muitas, dependendo do clima, as pessoas andam nuas, não creio que a pornografia tivesse grande efeito. A pornografia faz algo muito simples: mostra, revela. É esse o seu segredo. Um produto pornográfico não faz mais do que isso: coloca ao alcance do olhar o que estava vedado, por imposição da moral e dos bons costumes. A pornografia torna explícito o que estava escondido. E não resulta, obviamente, se o corpo nu, os actos sexuais, não estiverem, à partida, escondidos. 

Claro que, como todas as indústrias bem sucedidas, a indústria pornográfica cresceu e desenvolveu-se. Neste momento, estão disponíveis produtos para todos os gostos. Algumas correntes de feminismo acabaram por defender o direito à pornografia, como forma de acentuar a emancipação da mulher, na sua assunção de uma sexualidade livre, autónoma e plena. Neste momento a pornografia é mais do que começou por ser, quando, principalmente no ocidente, se decidiu esconder da vista o que está perfeitamente à mostra na natureza. E há países, como o Japão, em que a sexualidade é vivida de forma diferente da nossa, em que a pornografia também prosperou. Nesse país, o consumo de hentai é massivo, sendo comum encontrar um pai de família a ler um livro de manga pornográfica no metro. O que se mantém comum, parece-me, é que a pornografia é produzida e consumida como forma alcançar excitação sexual. E, de resto, são possíveis apropriações artísticas, simbólicas, filosóficas. Relembro as criações de Jeff Koons, representando actos sexuais com a sua esposa na altura, Cicciolina, sendo que o casamento, em si, foi entendido como um acto meta-artístico.

6 comentários :: O que é pornografia II

  1. a nudez é um conceito da moral muito bem aproveitado pela religião para oprimir o povo.

    mas a nudez mais rentável, tirando a imagem amadora que existe às toneladas e é gratuita, é uma nudez cuidada, basta ver as imagens que circulam pelos mails são meninas torneadas, com os seus contornos muito bem definidos, e com a devida quantidade de cm3 de silicone se necessário for para segurar o peso da gravidade. Os olhos também comem, e de facto quem primeiro come são os olhos. E todos olham com facilidade para uma jovem que tem um peito firme redondo pequeno, uma anca pequena, que potencia um rabo redondo, firme e pequeno, os pelos não existem ou os que existem estão em sítios estratégicos, é claro que o photoshop também ajuda...

    E comparando esta discrição com uma índia das amazonas... ou com uma mulher africana que vive algures na selva africana é claro que os conceitos de erotismo, pornografia são para aqueles completamente diferentes dos nossos.... e daí talvez não, porque afinal os olhos também comem, e garantidamente que a maior parte dos homens, come com os olhos, uma menina [estereotipadamente] atraente, o mesmo digo em relação aos homens, as senhoras a primeira coisa que reparam é num moço com um corpo contornado, os seus músculos bem definidos, incluindo a zona abdominal... (não estou a falar dos armários que costumam ter como seu habitat normal os ginásios e as porta das discotecas). Uma moça não olha para um jovem que tenha já uma pequena barriguinha do tempo (vulgo calo sexual) tenha pelo seu corpo bastante cabelo e pouco musculo... esses passam por norma comletamente despercebidos ao olhar das senhoras, tendo de se valerem de outros dotes (incluindo a inteligência) para se darem a conhecer, os "modelos" basta passarem para se ouvirem suspiros delas do tipo, "ai que noite"...

    é claro que acima disto ainda existe muita censura sexual feminina, ainda hoje a mulher é educada a ser a dona de casa, a ser a mãe, não a ser uma mulher, mas sim uma pessoa plena de desejo sexual. Quando em casa, se trate o sexo com naturalidade, quando em casa se ensine que não devemos ter vergonha de nós mesmos, e isto maioritariamente para as mulheres, aí sim, teremos uma nova revolução sexual e esta pacifica, em que todos atingem o pleno direito de dar e receber e de viver a sua sexualidade de forma saudável e plena. A pornografia e o erotismo conceptualmente têm de mudar.

    Cumprimentos Provocantes

  2. sim, a nudez, como conceito, é estranha. mas talvez já se tenha constituído como conceito há algum tempo. para uma ínida, não ter qualquer adorno ou pintura no corpo, talvez equivala a estar nua. ou talvez não. ainda quero acreditar que nudez é um conceito construído pelas nossas civilizações vestidas, com "as partes pudendas" bem afastadas no olhar.

    olha, publiquei um post, como resposta (e agradecimento) pelo teu comentário.

    obeigado pela visita e pela opinião.

    abraço.

  3. eu gosto de pornografia! é bastante agradavel aos olhos, "comer" um pouco daquele pedacinho de carne que ali passa. E também gosto do erotismo, do erotismo artistico de uma foto, o corpo de uma mulher, ou de uma parte da mulher, com a respectiva sombra, anglo e demais jeitos do fotografo, é agradavel ver.

    não sou consumidor de pornografia, não mais do que qualquer outra pessoa que recebe por e-mail vindos de amigos e amigas imagens XXX, algumas são pornografia pura e dura, outras são imagens de mulheres nuas em posições sugestivas mas sem acentuar as partes sexuais em demasia.

    mas no fim, está tudo nu! e o nosso corpo é agradavel de se ver, olhar, melhor ou pior acaba sempre por encher o olho, depois é tudo uma questão de gosto, mas de facto sabe sempre bem olhar para um corpo nu.

  4. É curioso que tenhas escolhido este tema que foi justamente a base da minha tese de pós-graduação.E é interessante ver as várias abordagens e sobretudo verificar a (muito comum)confusão de conceitos e que mais trabalho me deu em investigação.

    A Pornografia é uma expressão repescada no séx.XIX do grego – pornē + graphein - que etimologicamente significa a escrita de ou para as prostitutas. Esta será a definição mais enciclopédica do termo mas também a que menos informação nos dá. Por implicar com vários campos da acção humana (religião, moral, lei, sexualidade, etc) a pornografia tem inúmeras definições, por vezes até contraditórias e que, regra geral, trazem em si uma implícita ou explícita condenação ou suporte da práctica.

    Por outro lado, o discurso académico sobre a pornografia tem sido feito sobretudo no campo legal e legislativo.
    Se o mundo cultural e intelectual querem mostrar abertamente o que durante séculos foi escondido, o mundo judicial e político tentam criam novas restrições. Mas mais do que uma questão de censura, trata-se de um problema relacionado com a política do corpo, ou melhor, com a biopolítica. Foi Foucault quem definiu alguns dos principais conceitos respeitantes à biopolítica mostrando as dimensões micropolíticas do poder, as suas suas hierarquias, a serialização dos indivíduos nos limites de cada instituição ligada ao panopticon que nos ajudam a perceber a forma como o poder cerce as nossas manifestações pessoais e como a loucura pode ser instrumento de liberdade. Agamben preocupou-se com a ontologia da política na sua relação com o espaço originário, nas suas relações básicas de poder e no seu papel na determinação fundamental da existência, adiantando os conceitos de estado de excepção e vida nua. O estado de excepção, que é proclamado pelo poder soberano de forma a suspender a validade da lei está a tornar-se na regra onde a dicotomia fundamental da dominação do poder absoluto e da vida nua deve ser entendida . Então,

    «Até o conceito de “corpo” [...], já está desde sempre preso num dispositivo, ou melhor, é desde sempre corpo biopolítico e vida nua, e nada, nele ou na economia do seu prazer, parece oferecer-nos um terreno firme contra as pretensões do soberano.»


    Contudo, Agamben não indica nenhuma possibilidade de o homo sacer limitar o poder soberano. Uma vez que - como demonstrou Deleuze - o poder é pensado numa relação entre o desejo e o interesse, a resposta possível estará na exaltação do desejo. Roger Bruegel – o comissário da última Documenta - acrescenta:

    «[…] as in sexuality, absolute exposure is intricately connected with infinite pleasure. There is an apocalyptic and obviously political dimension to bare life […]. There is, however, also a lyrical or even ecstatic dimension to it – a freedom for new and unexpected possibilities […].»


    A censura existe justamente pelo receio da força das imagens na mobilização dos nossos sentidos. Uma imagem vista como capaz de provocar desejo sexual, torna-se ofensiva e será necessariamente regulada, ou seja, terá acesso restrito ou será censurada. Entra no campo do interdito:

    « Interdito indica uma ação intentada com o fim de proteção e caracterizada por um preceito proibitório, como o impedimento do uso, a fruição de bens ou o obstáculo ao acesso a lugares ou a coisas considerados sagrados ou puros.»(Mauro Koury, «Fotografia e Interdito»)

    A exaltação do desejo tem que ser pensada dentro do quadro mental do pornográfico entendido como uma campo semântico tal como o poético, o fotográfico ou o cinematográfico. O pornográfico tem de ser aceite enquanto campo de largo espectro que engloba e imbui os conceitos de erótico, obsceno e interdito. Uma vez que as fronteiras e idiossincrasias deste últimos conceitos negam-se a uma classificação precisa: o que para uns é erótico, obsceno ou interdito, para outros é pornográfico e para outros ainda, emético ou anódino. Como mostrou David Freedberg:

    «It might also be desirable to establish a distinction between erotic and pornographic, or at least to devise a sliding scale, beginning with a work that presents the nude cold, at it were, the passing to something that more blatantly suggests sexuality, and terminating with the representation of the sexual act itself. […Contudo…] The erotic-pornographic distinction may only be semantically real (and intersubjectively variable) […] it is not uncommon to find that the suggestive turns out to be more provocative than the blatantly descriptive.» (The Power of Images»)

    Assim interessa sobretudo perceber a evolução das mentalidades na compreensão do que é o pornográfico pelo entendimento que se fez do que é a pornografia uma vez que «What is called pornographic remains wholly contextual; there can be no hope of deriving the term transcontextually or on anything remotely approaching a transcultural base.»

    Na minha tese preocupei-me sobretudo com «O entendimento do pornográfico na arte contemporânea» na obra de artistas como Cindy Sherman, Mapplethorpe, Jeff Koons entre outros.

    Falta de tempo e oportunidade impediu-me de poder incluir o teu trabalho. Talvez quando passar a tese de Doutoramento.

  5. Boa Tarde. Depois de uma conversa telefónica com o próprio verifiquei que este blog não é da responsabilidade do Rogério Nuno Costa a quem o meu comentário foi dirigido.

    Peço desculpa pela familiaridade do trato, mas espero porém poder continuar este interessante diálogo.
    :)

  6. ok, entretanto, publiquei o teu comentário - que é uma contribuição fantástica para a discussão do tema neste blogue. (se tiveres alguma objecção, retiro-o. vou só acrescentar [comentário dirigido ao Rogério Nuno Costa].